O AMOR DO MAL: FILME CISNE-NEGRO
Sobre o que fala o filme Cisne Negro?
Na verdade essa é uma pergunta estúpida. Obras de arte não falam sobre alguma coisa. Elas mostram aquilo sobre o qual supostamente deveriam falar. Nosso discurso dissertativo, nossa prosa filosófica, nosso ensaísmo linguístico é que nos joga no mundo da representação.
De certo modo é isso que nos compõe. Representamos o mundo e por causa dessa representação nos preservamos da loucura com a qual a realidade nos ameaça. Mas como nada vem de graça, acabamos muitas vezes sendo encapsulados nas garras da normalidade. Nossos símbolos nos aprisionam, nossos ídolos nos devoram, nossa representação do mundo se torna o porão sombrio em meio ao qual, muitas vezes, sepultamos nossa esperança e nossa liberdade.
Libertar-se dessas representações é uma etapa fundamental do crescimento humano, mas pode fazer com que a gente acabe mergulhando no lado oposto do abismo.
Cisne Negro mostra o processo de decomposição de um personagem. Uma mulher, moldada pelo amor de uma mãe. Um amor perverso. Um amor do mal.
Nossas mitologias coletivas não deixaram espaço para a mãe do mal. Maria, em sua abnegação santa, se tornou ícone de uma maternidade e de uma feminilidade santificada, absoluta, resignada no altar do sacrifício. Só escolhemos o lado luminoso do amor materno. A luz que emana da mãe santa. Temos dificuldade em sentir o amor do mal, que sutilmente infeciona a vida dos filhos, com uma presença obsessiva, marcada por um cuidado perverso, por uma vigilância mortífera.
Cisne Negro mostra Natalie Portman. Apenas ela. Tudo o que gira em seu entorno, como a própria câmera tremida, tensa, que a acompanha durante dos ensaios do balé, durante sua transformação no palco, está ali apenas para que nós, os voyeus incontroláveis, os tresloucados consumidores de emoções cinematográficas, possamos assistir a sua desconstrução.
Ninguém ao seu redor, nem seu coreografo, nem seu duplo (a bailarina com asas tatuadas nas costas que supostamente a persegue), nem mesmo sua mãe que lhe rouba o rosto, são alguma coisa a mais do que partes de seu próprio personagem.
Sabe, não sou desses cinéfilos militantes que tem de cabeça o nome de todos os filmes ou mesmo a leitura de todos os estilos cinematográficos, costurados a base de teses históricas e interpretações acadêmicas. Assisto de vez em quando um filme, quando arrumo alguém para ficar com as meninas (minhas duas filhas pequenas). Mas eu posso apostar que fazia tempo que o mundo do cinema ocidental não via um papel tão escandalosamente autoexplicativo como o interpretado por Portman neste filme.
Cisne Negro nos mostra essa mulher. Uma mulher que se liberta do amor do mal. Uma libertação que muitas vezes não vem sem a morte do corpo, sem a decomposição das couraças mentais, das frágeis arquiteturas de nossa normalidade.
A arte é assim. Ela nos oferece um poderoso instrumento para que possamos nos ver livres de nossas representações. Uma libertação que é necessária mas que carrega seus riscos.
Pois é, amigo velho, já dizia o Rabi: viver é como caminhar no fio de uma espada. De um lado, o mundo dos mortos, do outro, o mundo dos mortos.
A vida está no meio.
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