Três semanas atrás, a educadora Wanda Engel levou um susto ao ver a remetente do e-mail em sua caixa de entrada: Hillary Clinton, secretária de Estado dos Estados Unidos. Na mensagem, um convite para fazer parte do exclusivo Conselho Internacional de Liderança Feminina, ligado ao governo americano.
Wanda é a única brasileira do grupo não por acaso. Desde os anos 1980, a professora de geografia que virou ministra da Secretaria de Assistência Social do governo FHC milita pela educação e pela erradicação da pobreza.
Foi ela quem unificou o cadastro dos programas sociais que, no governo Lula, deram origem ao Bolsa Família.Filha de um imigrante alemão e de uma servente, ambos só com a 4ª série, essa carioca do Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro, enveredou pela área da assistência inspirada na ajuda que recebeu da escola em que estudou. Eram livros, uniforme, passagens de ônibus e cestas básicas.
O doutorado em educação e a experiência em Washington, como funcionária do Banco Mundial, não suprimiram o palavreado de quem já gastou muita garganta e muito giz dando aulas. Ela se refere ao estudante com o termo genérico de o menino. Wanda concedeu esta entrevista à revista Época.
Onde está o maior problema do ensino brasileiro?
No ensino médio. O Brasil praticamente já universalizou o ensino fundamental. Antigamente, oito anos de escolaridade bastavam. Mas, na sociedade do conhecimento, você precisa de 11 anos para ter alguma chance. Até 2006, a exigência de ensino fundamental e médio no mercado de trabalho empatava. Depois, a exigência de empresas pelo ensino médio triplicou. O país coloca 97% das crianças no ensino fundamental, mas só 50% dos que têm de 15 a 17 anos estão no ensino médio. E não têm bom desempenho. Só metade deles termina. Vai ser uma geração perdida e o apagão de mão de obra vai piorar.
O ensino médio deveria ser profissionalizante?
Não todo. Mesmo na Alemanha, que tem um dos maiores índices, o ensino profissionalizante é só 30% do total. As pessoas mudam de trabalho, as empresas mudam suas exigências. Mas com certeza é preciso flexibilizar o currículo do ensino médio. No meu tempo, tinha científico e clássico. Quem queria ser jornalista não precisava saber física. Agora não. Todo mundo tem de ser generalista. São 16 disciplinas obrigatórias. Aí o menino desiste.
Nosso currículo é assim tão ruim?
Ele não tem a menor flexibilidade. Há quem afirme que só português e matemática deveriam ser obrigatórios, além de alguma coisa de ciências. O resto deveria ser decidido por interesse individual. O menino precisa saber bem português para se comunicar. E matemática, que desenvolve o raciocínio lógico e o poder de abstração. É uma das missões da escola desenvolver esse poder de abstração. O pensamento de quem não é escolarizado é um terreno fértil para políticos populistas. Com cada menino que morre assassinado, o Brasil joga fora sua maior riqueza, os recursos humanos. Vai tudo para o ralo: educação, saúde…
Há tratamento ideológico da educação hoje no Brasil?
Com certeza. Os livros de história são absolutamente tendenciosos. Não desenvolvem o senso crítico. O ensino ideológico prepara pessoas para pensar apenas de determinada forma. E não é esse o papel da escola. Seu papel é passar conhecimentos, valores e significados. Hoje, os cientistas sociais falam que o capital social é formado de respeito, confiança e solidariedade. São os alicerces de uma sociedade coesa. A escola precisa desenvolver isso.
Qual é o problema mais grave da educação brasileira?
A formação do professor. Minas Gerais teve uma experiência em que ofereceu um banco de questões para os professores, e eles montavam as provas. Mas precisavam botar a resposta no sistema. A quantidade de professores que erravam tudo era impressionante. Muitos não sabem o conteúdo nem têm metodologia para ensinar. Mas aprendem Paulo Freire, os construtivistas, todas as teorias de educação. Tudo o que na prática não faz tanta diferença. Não estou dizendo para jogar no lixo. Estou dizendo que o professor precisa de mais do que isso.
Como é sua experiência como dirigente do Instituto Unibanco de educação?
Resolvemos deixar os problemas estruturais um pouco de lado. Chegamos à escola e dizemos: Você quer dar a volta por cima? Quer aumentar seus resultados? Eu te ensino como fazer, te dou apoio técnico, dinheiro e autonomia. Mas vou acompanhar. As escolas têm até três anos para melhorar. Não é adotar a escola, mas dar um sacode nela. Fizemos em 22 escolas no Rio Grande do Sul e 20 em Minas Gerais. E elas conseguiram. Não mudou nada nem professor, nem salário, nem currículo. Existe um espaço para transformação que as pessoas não usam.
Há quem defenda colocar o ranking do Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, na porta das escolas…
Não sou contra, mas é complicado, só isso não resolve. No ensino médio, que é o maior problema, não existe uma prova nacional. O Enem é obrigatório apenas para quem vai prestar vestibular. Algumas escolas encorajam só os melhores a fazer. É preciso haver um exame universal e obrigatório no fim do ensino médio, como há o Ideb para o ensino básico.
Dizem que um exame universal é impossível em um país com tanta diversidade. Há escolas indígenas em que mal se fala português.
Bobagem. Há até quem diga que nem currículo mínimo poderia haver, por causa da diversidade. Mas o índio tem direito de saber o mesmo que o menino de São Paulo.
A violência afeta a educação?
Sim, perdemos jovens para o desemprego, o subemprego, o emprego marginal e para a morte. O número de mortes por acidentes ou violência no Brasil é em média de 70 mil por ano (em 2009 foram 130 mil). Muitos jovens pobres morrem com 20 anos, embora pudessem trabalhar pelo menos até os 40. Faça a conta: o Brasil perde por ano 2,8 milhões de anos de trabalho dessas pessoas. Com o menino que morreu, você já gastou com educação, saúde, alimentação. Vai tudo para o ralo. O Brasil joga fora sua maior riqueza, os recursos humanos.
A senhora foi diretora do primeiro Ciep, na Mangueira, no período em que o tráfico começou a dominar territórios no Rio de Janeiro. Como foi isso?
Convivi de perto com a morte dos meninos, muitos assassinados. O chefe do morro na época era o Pedro Bala. Apesar de tudo, tenho boas lembranças. No primeiro ano, 1983, alfabetizamos os meninos com o samba-enredo que tinha dado a vitória à Mangueira naquele Carnaval. Infelizmente, naquele ano, já morreu o primeiro. Estava jurado de morte. Dos 21 alunos da primeira turma alfabetizada, apenas sete estão vivos.
Que cargo é esse para o qual Hillary Clinton convidou a senhora?
Ainda não sei como o tal Conselho funcionará exatamente. Mas sei que Hillary sempre militou entre as feministas e defende a importância da mulher no desenvolvimento dos países, ricos ou pobres. Concordo. Quando você oferece melhores oportunidades para as mulheres, a tendência é que o país cresça economicamente. Os dados mostram que vários índices dependem da escolaridade da mulher: mortalidade infantil, abandono escolar, saúde. Hillary tem mostrado, em palestras pelo mundo, que, nos locais em que predomina a liderança da mulher nos negócios, o PIB cresce mais.
Como, na prática, a mulher é influência tão forte no desenvolvimento?
Teoricamente, há papéis de homem e mulher muito definidos na sociedade: ele seria o provedor; ela, a mantenedora do lar. Nas famílias mais pobres, o homem não tem mais esse poder. O número de homens que abandonam o lar é grande. Outros tantos são alcoólatras e desempregados. São as mulheres que seguram a barra. Mesmo quando o homem trabalha, é a mulher que decide onde pôr o dinheiro.
Era assim na sua família?
Em um período, sim. Meu pai era um mecânico que tinha vindo da Alemanha. Minha mãe, no começo, era do lar. Os dois só tinham até a 4ª série. Morávamos no Méier, éramos classe média baixa. Meu pai ficou tuberculoso e diabético ao mesmo tempo. E minha mãe, que nunca tinha trabalhado, precisou botar dinheiro dentro de casa. Conseguiu um emprego de servente no Instituto de Educação. Estudei lá por 11 anos. Recebia tudo: uniforme, livros, cesta básica. Sou fruto de uma política de assistência da escola.
Fonte: Revista Época
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