Por
que as crianças não aprendem? É essa a pergunta que tem movido
centenas de pesquisadores, educadores, famílias e autoridades a
entenderem o fracasso escolar e a buscarem soluções para um dos maiores
problemas da educação brasileira atualmente.
Falta
de inteligência, problemas psicológicos, biológicos, afetivos, pobreza
e desnutrição. Em teoria, essas explicações perderam sentido na década
de 80, quando as dificuldades na aprendizagem deixaram de ser vistas
como uma questão exclusiva dos alunos e passaram a ser analisadas à luz
de todo o processo de escolarização.
Em teoria.
O
que se tem visto nos últimos dez anos é o retorno das explicações
biológicas para justificar defasagens no aprendizado. A chamada medicalização da educação
é definida por especialistas de educação, psicologia e pediatria como
um processo que transforma questões coletivas e sociais em questões
individuais e biológicas, mais especificamente, em doença.
Nessa
perspectiva, os estudantes que apresentam problemas contínuos para
ler, escrever, ouvir, calcular, se concentrar e até obedecer são
diagnosticados como portadores de algum “transtorno” de aprendizagem e
precisam de tratamento. Estudos recentes afirmam que até 17% da
população mundial seria disléxica e que cerca de 5% das crianças no
mundo seria portadora de Transtorno de Déficit de Atenção com
Hiperativismo (TDAH), de acordo com a Associação Brasileira de Dislexia
(ABD) e a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA).
Os
transtornos ligados à educação já catalogados e mais conhecidos hoje
são o TDAH – que se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e
impulsividade; Transtorno de Leitura (Dislexia) – que envolve as áreas
da leitura, escrita e soletração; Transtorno da Expressão Escrita
(Disortografia) – ligado à escrita e comumente associado à dislexia;
Discalculia – relacionado à matemática e suas operações; e Transtorno
de Oposição Desafiadora (TOD) – caracterizado pela desobediência e
comportamento hostil.
Segundo
Maria Aparecida Moysés, professora titular do Departamento de
Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e fundadora do Fórum de Estudos sobre Medicalização
de Crianças e Adolescentes, “a medicalização vem ocorrendo no mundo
todo, em escala crescente e em todas as instâncias da vida, mas as áreas
que têm sofrido mais violentamente esse processo é a educacional e a
do comportamento”.
“Quando
um problema coletivo é medicalizado, isenta-se de responsabilidades
todas as instâncias que respondem por esse problema, a começar pelas
autoridades, instituições e as próprias famílias, e localiza-se o
problema no indivíduo. A medicalização tende a acalmar conflitos e esse
é um dos motivos pelos quais ela se dissemina tanto”, analisa a
docente.
Em
seus estudos, Maria Aparecida revela que, no Brasil, a medicalização
na educação surgiu antes mesmo da constituição das escolas como
conhecemos. Na primeira década do século XX, a cidade de São Paulo
possuía apenas 14 salas de aula, sem espaço escolar propriamente dito,
mas já vigorava o serviço de higiene escolar.
“Ele
era instituído com profissionais contratados e que diziam como deveria
ser a escola (que naquele momento ainda não existia), as carteiras,
etc. E mais: advertindo que, quando as crianças pobres começassem a
estudar, se não houvesse uma atenção médica adequada, elas não
conseguiriam aprender”, acrescenta.
Como funciona
O
fenômeno da medicalização começa em sala de aula. O professor, após
meses de trabalho, detecta uma dificuldade constante do aluno em
aprender o que é transmitido por ele. Dispersão, leitura insatisfatória e
escrita com graves erros são queixas comuns. Durante uma reunião de
pais, os problemas são comunicados aos responsáveis.
A
essa altura, geralmente o estudante já carrega o estigma de “aluno
problema” entre os colegas de turma e demais professores e deve,
seguindo recomendações da escola, procurar ajuda especializada. Aflitos
porque o filho não aprende, os pais buscam profissionais que possam
diagnosticar onde, afinal, reside a falha dessa criança.
Para
a psicóloga Beatriz de Paula Souza, que é pesquisadora do Laboratório
Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar e
Educacional (LIEPPE), do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), “instaura-se, nesse momento, uma situação coletiva de
sofrimento”. A criança sofre porque não aprende, os pais porque não
sabem o que fazer e os professores por verem, na prática, seu trabalho
não se concretizar.
Beatriz
relata que, até pouco tempo, 100% dos estudantes que eram encaminhados
a ela, por meio do Serviço de Atendimento à Queixa Escolar, oferecido
pelo Instituto de Psicologia da USP, chegavam com “suspeitas” ou laudos
de transtornos.
Falta de provas
Os
diagnósticos dos supostos transtornos de aprendizagem são feitos por
meio de análise clínica. Porém, relatos cada vez mais comuns apontam
que meia hora de conversa no consultório é suficiente para se chegar a
um dessas doenças. Caso a investigação de TDAH siga o caminho
recomendado será aplicado o questionário denominado SNAP-IV.
Construído
a partir do Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM-IV) da Associação
Americana de Psiquiatria, esse sistema classificatório deve levar em
consideração a duração, freqüência e intensidade dos sintomas.
Analisa-se também a presença dos mesmos transtornos em pais e irmãos,
já que o TDAH é considerado hereditário.
No
caso da dislexia, o recomendado é que a criança possua, pelo menos,
dois anos de escolarização. Antes disso, ela pode ser avaliada apenas
como uma criança “de risco”. Acontece que os trabalhos que defendem a
existência dos transtornos já apresentam estudos associando essas
doenças. Pesquisas afirmam, por exemplo, que até 50% dos disléxicos
possuam também TDAH.
Maria
Aparecida diz que até hoje “não foi comprovada a existência de uma
doença neurológico-psiquiátrica que comprometa a aprendizagem”. Para
ela, esse fenômeno da “psiquiatrização” dos problemas educacionais
ilustra, na verdade, a falta de capacidade da escola e da família em
lidar com as novas formas com que crianças e jovens se relacionam com o
mundo. “Sem falar nos interesses comerciais que estão por trás”,
aponta.
Diagnóstico
“A
chegada do diagnóstico de ‘transtorno’ é um alívio porque a família
finalmente descobre a causa e, logo em seguida, uma cura para o
problema”, afirma Maria Aparecida. A pediatra é, ao lado da professora
titular da Faculdade de Educação da Unicamp, Cecília Collares, uma das
principais estudiosas da Medicalização no Brasil.
Cecília
inclui no campo dos aliviados o professor. “O não aprendizado é a
negação do seu trabalho. Quando se descobre que isso não se dá por
incompetência sua, mas por um problema do aluno, ele fica aliviado.”
A
pedagoga acredita que melhores condições de trabalho, autonomia e
formação são essenciais para garantir um bom trabalho pedagógico. “Os
professores se dividem entre aulas no estado e na prefeitura, fazem
formações a distância, os salários são uma vergonha. Como esperar que
eles deem conta dessa realidade?” Para ela, “é preciso encontrar
soluções pedagógicas para o fracasso escolar”.
Com
o diagnóstico de “transtorno” em mãos, a criança dá início a um
tratamento. Para os portadores de TDAH, os remédios receitados têm como
princípio ativo o Cloridrato de Metilfenidato, conhecido popularmente
como Ritalina. Essa substância atua como estimulante cerebral e promete
ser a cura para os principais sintomas do transtorno.
Comercializado
pelos laboratórios Janssen-Cilag (com o nome de Concerta®) e Novartis
(como Ritalina®), o remédio é conhecido como droga da obediência por
provocar o chamado “efeito zumbi-like”, que deixa a pessoa parada,
contida. Segundo Maria Aparecida, “tudo isso é sinal de toxicidade. O
remédio é dado para a criança ficar parada porque está incomodando.”
As
reações são inúmeras e graves. Vão desde sonolência ou insônia,
passando por alucinações e, em situações extremas, psicose e
comportamento suicida. Como outras drogas anfetaminosas, pode causar
dependência. De fato, um trabalho do Centro de Estudo sobre Ciência
Genética, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, mostra que de 30%
a 50% dos jovens em clínicas de tratamento para dependentes de droga
relatam o uso abusivo de Ritalina.
“O
que tem acontecido é que os jovens param de tomar o remédio escondido
dos pais, porque se sentem muito mal”, afirma Maria Aparecida a partir
de sua experiência com jovens diagnosticados com TDAH.
Políticas Públicas
O
aumento na venda de caixas de Ritalina em farmácias saltou de 71 mil,
no ano 2000, para 2 milhões em 2010, posicionando o Brasil como segundo
na lista de consumidores do produto, atrás apenas dos Estados Unidos,
segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos
(IDUM).
Esse
dado não é suficiente para entender o fenômeno, já que a legislação
brasileira ainda obriga a apresentação de receita médica para a compra
de remédios tarja preta. Para funcionar, a indústria opera em sinergia,
de um lado, com as associações de suporte aos pacientes e familiares,
oferecendo cursos de “atualização” e “capacitação” aos professores e,
de outro, apostando na criação de políticas públicas que garantam por
lei o diagnóstico nas escolas e o tratamento na rede de saúde.
Seis
estados já possuem projetos de lei ligados aos “transtornos” de
aprendizagem. São eles: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo,
Rio de Janeiro, Acre e Piauí. Outros nove – Amazonas, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Tocantins, Bahia, Minas Gerais, Paraná, Ceará e Goiás –
têm propostas tramitando em suas respectivas Assembleias Legislativas.
“Os
projetos de lei costumam ter três formatos. Um deles pede a
contratação de pessoal da saúde pela educação, para fazer diagnósticos. O
outro tipo dispõe sobre a realização do tratamento na própria escola. E
há mais um que tenta garantir condições diferentes para realização de
avaliações e testes. Esses três tipos correm no Brasil inteiro e são os
mesmos. Só muda o nome do político que apresenta e a sigla do
partido”, relata Cecília.
Aprendiz
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